Seríamos todos uberizáveis?
Ludmila Abílio aponta: a uberização vai além das plataformas. É uma nova artimanha do capital para gerenciar de forma mais eficiente o exército de desocupados. O precariado enxerga a exploração; a saída continua nublada. Mas surgem fagulhas de resistência…
Publicado 12/05/2025 às 18:05 - Atualizado 12/05/2025 às 19:12

Nem só com as plataformas digitais se faz a uberização, defende a socióloga Ludmila Costhek Abílio em entrevista ao Outra Manhã, nesta terça-feira (7/5). Elas, claro, conferem materialidade à exploração. Porém, analisa ela, a uberização vai muito além.
Abílio é pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) da Unicamp, hoje coordena uma pesquisa sobre as percepções políticas de trabalhadores uberizados das periferias, além de outra que compara a situação dos motoboys brasileiros nas cidades de Campinas, São Paulo e Londres. Ano passado, ela lançou o Dossiê das Violações dos Direitos Humanos no Trabalho Uberizado, uma pesquisa de fôlego realizada com 200 motofretistas, em parceria com Silvia Maria Santiago, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
O dossiê corrobora que a ocupação é tipicamente masculina e negra. E que não é um mero bico: mais da metade atua há mais de quatro anos. Mas, contrariando o senso comum de que os entregadores seriam predominantemente jovens, o trabalho demonstrou que a maioria tem mais de 30 anos (56,1%) — e destes, 25,4% têm mais de 40. No entanto, os jovens têm participação significativa: 43,9% dos motofrentistas têm até 29 anos.
Outro dado é que a maioria dos trabalhadores tem no mínimo ensino médio completo — e 8,6%, ensino superior completo. A jornada é trituradora de corpo e mente: mais da metade (52,6%) dos entregadores por aplicativo trabalha mais de 60 horas por semana; 37,6% todo dia, faça sol ou chuva. A remuneração por hora é de R$12,50, inferior ao “não-plataformizado”, que recebe em média R$15,62. A maioria dorme menos de oito horas por noite, tem níveis preocupantes de medida da pressão arterial (incluindo os jovens) e não ingere a quantidade de líquidos necessária durante o período de trabalho, ou seja, trabalham desidratados.
O dossiê expõe como a brutalidade da uberização escancara-se também no índice de acidentes de trabalho: 65,7% disseram já ter sofrido acidente de trânsito; destes, 42% tiveram que se afastar do trabalho, a metade por cerca de três meses. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, no estado de SP os acidentes fatais nos quais o veículo da vítima era automóvel vêm declinando: em 2025 foram 1.577; em 2023, foram 1.239. Já os óbitos de motociclistas estão em ascensão: passaram de 1.864 para 2.265 no mesmo período.
Plataformas digitais, catalizadoras da exploração
Pode-se afirmar que Ludmila Costhek Abílio foi pioneira no estudo da uberização no Brasil — antes mesmo da chegada da corporação estadunidense em 2014 a São Paulo, espalhando-se rapidamente por todo território nacional. Em sua tese de doutorado, defendido em 2012 e que virou o livro Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos (Boitempo, 2014), ela foi a campo para ouvir as revendedoras responsáveis por boa parte do êxito comercial da Natura, que se tornava uma das maiores corporações mundiais (e, inclusive, comprou a Avon Internacional).
Abílio queria analisar o trabalho informal feminino num segmento denominado Sistema de Vendas Diretas, nome técnico da relação entre empresa e revendedoras. Viu uma situação singular: não havia precarização de vínculos trabalhistas (pois não havia vínculo algum), o “chão de fábrica” dos estudos clássicos sobre o trabalho e muitas revendedoras viam-se também como consumidoras dos produtos, embaralhando tudo.
“Minha questão, quando fui fazer a pesquisa, era entender como uma empresa organiza um trabalho que não parece trabalho”, explicou no ciclo de diálogos O Futuro do Trabalho do Brasil, organizado pelo Outras Palavras em 2021, com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.
Havia dinâmicas diferentes dos conceitos preestabelecidos como “informalidade” e do “empreendedorismo”; e muito próximas do que depois se denominaria de “uberização”, ainda que sem o gerenciamento algorítmico. Logo depois deste trabalho, Abílio dedicou-se à pesquisa sobre motoboys, acompanhando a entrada das empresas de aplicativo no setor e a reconfiguração do trabalho dessa categoria. “O que vi ali eram características já postas no trabalho daquelas mulheres, mas que ganharam outra dimensão, se generalizando, pois as plataformas digitais catalisam e organizam racionalizadamente esse processo de generalização da informalização do trabalho”.
Confira trechos da entrevista, disponível na íntegra no Outras Palavras TV.
JORNADA 6×1
“A jornada 6×1 coloca em questão as condições mínimas de dignidade, da reprodução social do trabalhador, do seu dia a dia, do seu tempo livre, do seu descanso. Está mostrando que as formas de exploração do trabalho não correm só “por fora”, o emprego formal também tem que ser posto em pauta. Ela mexeu na base social da sociedade, mobilizando-a mesmo com a polarização. A discussão da jornada 6×1 tem dimensões políticas fundamentais para a gente olhar para o nosso próprio tempo e ver que as coisas estão em movimento, as pessoas estão reagindo às formas de exploração do trabalho — e que isso mobiliza a sociedade.”
“SOMOS TODOS POTENCIALMENTE UBERIZÁVEIS”
“O termo plataformização ganhou um corpo que, hoje, a gente associa como a uberização aquele cara que trabalha por aplicativo. Isso joga muito o foco para a plataforma digital e obscurece as características gerais da uberização, que atravessam a nossa vida: todos nós, trabalhadores e trabalhadoras, somos potencialmente uberizáveis.
“As plataformas digitais estão oligopolizando seus setores de atuação, materializadas hoje por meio de grandes empresas, com atuação oligopolística, que é o que a iFood e outras empresas fizeram. Elas transformaram o mercado de entregas e, em poucos anos, empresas terceirizadas quebram, sendo absorvidas por três ou quatro empresas que iriam dominar o setor.
“Mas a gente tem que olhar para as características centrais da uberização, o que está no cerne, o que faz a gente se ver no futuro. Ou seja, entender uma tendência que atravessa a relação capital e trabalho e ela vai se atualizando. A uberização é uma vitória das formas de exploração do trabalho ao transformar o trabalhador e a trabalhadora em trabalhador just in time: a ideia de que, agora, a produção funciona sob demanda; eu produzo o carro quando ele já foi vendido; não pago salário, não corro o risco de pagar pelos momentos em que você não foi produtivo; quando você for necessário, eu te mobilizo. […] Você consegue usar esse trabalhador como um fator de produção da forma mais eficiente possível.”
A VIRAÇÃO
“O mundo do trabalho brasileiro, o que tece a vida dos trabalhadores, é um entra e sai do mundo do trabalho formal e informal. É a combinação de uma série de atividades. Uma rotatividade enorme, o aproveitar de oportunidades. É comum você entrevistar um motoboy que também é metalúrgico. As pessoas têm mais de uma ocupação, têm um empreendimento próprio… A jornada de oito horas não é uma referência na vida cotidiana, em que as pessoas têm o valor de sua força de trabalho extremamente rebaixado. É viração, não bico. Viração é estar num movimento permanente para garantir a própria sobrevivência de diferentes formas. Isso é constitutivo, não começou com a uberização, mas ela se apropriou desta realidade de forma centralizada e racionalizada. No primeiro artigo que escrevi sobre a uberização, chamei isso de subsunção real da viração. A datificação e a monopolização do iFood estão se apropriando e fomentando esse modo de vida — ao mesmo tempo. […] Com a uberização, vemos a extensão do tempo de trabalho que corre junto com o rebaixamento do valor da hora, sem a distinção entre o que é tempo de trabalho e o que não é. O cara tem que trabalhar cada vez mais para ganhar por aquelas mesmas oito horas. Dezoito horas para ganhar as oito.”
VER O UBERIZADO PARA ALÉM DA UBERIZAÇÃO
“Se você não estiver às oito da manhã na rua, você não vai ser demitido, é real. Mas também se você chegar às onze, não vai conseguir ganhar o mínimo necessário para seu dia de trabalho. Você está submetido a regras que funcionam das formas mais doidas e indecifráveis. E você, individualmente, não tem nenhum poder de negociação sobre elas. Se você falar com o motorista da Uber, ele diz: ‘Uber me explora’, ‘isso aqui é um absurdo’. Não é que ele está reconhecendo a subordinação à empresa, mas é que a gente está num momento de tantas derrotas no mundo do trabalho que leva a certa constatação: ‘sim, não tenho para onde correr’, ‘o mundo do trabalho é isso aqui’ — são estas coisas que estão em jogo. A gente tem que entender a perspectiva do trabalhador: como ele vivencia isso dentro de toda sua trajetória profissional, quais são suas referências de justiça e dignidade, qual experiência teve nas relações de emprego formal para não buscar desesperadamente outro. Isto é: entender a percepção e o posicionamento político dos trabalhadores.”
ALGO ESTÁ EM EBULIÇÃO
“Onde isso vai parar? É uma articulação de até onde esse mundo aguenta, de onde a corda estoura. E ela está estourando em diversos cantos. Mas o ataque às forças do trabalho é gigantesco, temos um capital com uma altíssima mobilidade: os trabalhadores se organizam, mas o capital vaza. Se você tem um trabalho muito organizado, você tem um Estado que legisla… Veja o PL [Projeto de Lei Complementar 12/2024] que o próprio governo propôs para os motoristas da Uber — nem a Uber escreveria tão bem… [O PL] criou uma categoria chamada autônomo por plataforma que quer dizer que o cara trabalha subordinado às plataformas, mas é autônomo. Um projeto que de saída diz não haver subordinação.
“O governo propagandeou esse projeto, crente que com o discurso do empreendedorismo teria adesão. Não teve. Esquerda e direita se opuseram, o que unificou os trabalhadores, as faíscas foram soltas e o governo teve que retirar o projeto que seria votado com urgência. Isso articulou a base dos trabalhadores.”
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